nos encontramos entre os dias 8 e 19 de julho nos espaços da Re.al e 30 da Mouraria, em Lisboa. 4 coreografas: Luciana, Silvia, Márcia e Ibon. Com o intuito de: criar o espaço suficiente para un encontro que potencie a descoberta de brechas no terreno, brechas de nao saber.
Foi uma proposta de descampar, estar lá, etc.
Lembro me especialmente dos momentos de desassossego e das maneiras de
fugir destes, quero dizer que a cada vez que se apresentava um incomodo, um
lugar de risco possível que conduzisse aquele encontro numa direcção imprevista
ou inesperada sempre tendíamos a uma recuperação dum marco estável: uma
conversa quase quotidiana, um aislamento individual que fugia da espacialidade
que estaria a ser gerada, uma saída real do espaço, um marco de estudo seja do
livro ou do corpo claramente identificável (visível) como corpo protegido no
significar do “estou estudando”. Por que haveríamos de querer desprender-nos
tão rapidamente dessa sensação de incomodo, desse estado tão potente? O que nos
faz querer encontrar sempre aquele cantinho seguro mínimo que funciona como um
cerco a volta, uma membrana de fato menos permeável? Será que durante estes
dias tivemos a fugir dessa incomodidade que emergia a cada proposta que nos fazíamos
nesse lugar de estar, estar junto, sem conhecer-nos quase, deixando que o
desconhecido campeia-se todo o tempo por lá? Pense varias vezes se descampar
não seria abrir aquele buraco negro que fosse engolindo as luzes dos
significantes, dos significados que nos fazem ser Ibon, Márcia, Sílvia,
Luciana; não como destruição, mas sim numa suspensão daquele reconhecimento
constante de nos próprios e daquele espaço concreto, naquele dia. Qual é essa
vivencia que se vai gerando enquanto nos propomos não criar marcos
pré-estabelecidos, nem de conversa, nem de actividade, nem de pensamento? É
isso sequer possível?
Durante esta semana no 30 da Mouraria e na Re.Al jogamos esse jogo a
momentos, esse jogo que escorrega ao lado de nos próprios e nos olha e, noutros
momentos, instalamos a calma do papo estabelecido, da rotina organizando se em
rotina, do tu és tu e eu sou eu. Mas a fissura, a brecha explodia levemente a
cada canto todos os dias, naquele aborrecimento, naquele incomodo com quem esta
ao lado, com um mesmo ao lado de si próprio. E se agarrássemos aquele incomodo
e fossemos com ele eramos vestias enfurecidas talvez, ou crianças chorosas, ou
seres perdidos numa imensidão, quase doentes, quase inumanos, loucos, loucos
talvez? Não sei bem porque isto me faz lembrar daquele livro “escrita da
potencia” (Giorgio Agamben) em que se fala da pena que é molhada na tinta
escura do pensamento, da potencia como aquela superfície opaca e profunda ao
mesmo tempo da escuridão. Descampamos numa amalgama de tinta, num nevoeiro sem
chão nem suporte, num colapso inasivel, buraco negro que absorve a luz da
representação imediata? Será? Descampamos numa escrita da dança que se escreve
no próprio emergir da dança? Esta semana foi isso, um lugar de potencia que
passava de leve, ao lado, inadvertido mas assobiando-nos?
Como pequena interferência neste texto e para insistir na importância da
metáfora do tinteiro e a mão que nele molha a pena, quero aproximar a frase
concreta na qual Agamben nos diz: “(…) decisivo não é tanto a imagem do escriba
da natureza, mas o facto do noûs, o
pensamento ou a mente, ser comparado a um tinteiro no qual o filosofo tinge a
própria pena. A tinta, a gota de trevas com que o pensamento escreve, é o
próprio pensamento.” Interessam nos aqui dois fatos que se desprenderiam desta
leitura; por um lado o que se desprende desta ultima frase “…a gota de trevas
com que o pensamento escreve, é o próprio pensamento” ou seja, essa afirmação
pela qual o pensamento, um dos fundamentos da nossa cultura, digamos a potencia
do humano, é exposto aqui como as trevas,
uma substancia em si inasivel, desconhecida e inidentificável, uma nebulosa
mediante a qual se definiria a própria potencia do pensamento, o seja o que o
pensamento é – pura potencia. E não só isto, já que junto a definição do
pensamento como tinteiro de trevas, ele – G. Agamben - nos oferece uma outra
imagem: a de a escrita própria desse
pensamento como uma escrita que se escreve a partir duma gota de trevas. A partir de aquí o segundo fato que nos interessa observar
é, a leitura que podamos fazer do termo pensamento, – que é a gota de trevas
com a que escrevemos -, já que nesta leitura concreta nos pode parecer estar
limitado ao marco da linguagem escrita, da palavra e do discurso. Mas e se
deslocarmos ou ampliarmos a concepção deste entendimento do pensamento para um
lugar mais abrangente que compreenda o movimento, a linguagem corporal-postural
que acompanha todo acto discursivo e da palavra e, em definitiva, estender mos
esse tinteiro de trevas ao self, a um corpo-pensante em potencia?
Aí talvez estejamos a olhar com a justeza suficiente para esse termo dito de
pensamento, e para nossa escrita tridimentsional no espaço. Talvez então, estas
leituras nos ajudem a nos aproximar de algumas percepções que nos acometeram durante
esta semana de Descampar. Talvez nos podamos aproximar desde ângulos outros a
experiencia da escrita coreográfica a partir das trevas (da névoa do nevoeiro)
que podam ter acontecido em instantes durante esta semana de estares no estúdio, ou os momentos frágeis
em que inscrevemos nosso corpo em trevas no espaço. É mais, talvez a
abertura para a comprensao psico-fisico-espacial do termo pensamento, nos ajude
a deslocar esse mesmo tinteiro de trevas
ao espaço com o qual estivemos a pensar o movimento, o corpo, a palavra e os
sonhos, e ver o escuro que contem a luz. Qual o tempo a percepção de ajustar-se
numa frequência de disponibilidades para mergulhar nas trevas de nosso
encontro? Há tempo, e há tempo dentro do tempo disso ficou alguma certeza.
Queria trazer este trecho de texto pelo fundo implícito de desconhecido que
implica em toda experiencia, pelo foco inconsistente mas assertivo das ditas
trevas em que se propõe nele uma potencia qualquer e pelo que isto possa
implicar na temporalidade de ver e ver-se, de compreender e compreender-se, na
emergência nestes dias da dilatação do tempo de identificação do “sim é” e o
“não é”. Isto porque durante o Descampado, nestes 5 dias de estar no estúdio,
me tem acompanhado uma urgência em agarrar-me as coisas, suster-me na parede
com um braço, correr sem correr a por o caderno e a caneta, refugiar-me num livro,
numa velocidade arquivadora ou conciliadora inesgotável. Mas também tenho me
descoberto em instantes fazendo coisas sem as fazer, deixando uma pegada de
agua no chão sem querer a deixar, apaixonando me da cadeira verde, perdendo
minhas costas em outras latitudes da esfera terra, desfazendo a linearidade dos
eventos e, sobre todo, esquecendo, esquecendo o que tinha que ser.
ibon salvador bikandi