Tentar dizer o que não sabemos
dizer tem vindo a ser uma prática continuada, ainda mais sabendo que quando
dizemos aquilo, vamos continuar sem saber ou simplesmente enunciaremos um
outro campo desconhecido. Olho muito longe e muito perto, aí onde os planos e
os volumes de novo se abstratizam e se desfocam e são qualquer coisa em potencia,
um “não sei”. Tentar articular na escrita, aquilo que queríamos dizer na palavra
em ato para outros muitos, vocês aí - ou melhor para nós muitos, eus aqui -,
tem sido também um movimento frequente. É o que estou a fazer.
Isto, é sim, uma introdução para
mim mesmo, uma tentativa mais de clarear a minha emergência em querer escrever
um lapso vivencial acontecido faz 10 minutos atrás quando passeava a caminho de casa, uma impossibilidade em me dizer a mim próprio, em me escrever. O que me
faz querer introduzir, mediante a língua escrita, esse meu lapso íntimo no
contexto coletivo da língua? Onde aparece a vontade de dizer-se? Entendo essa
vontade imediata de escrever como uma vontade de dizer, de por num plano
diferenciado a experiência – melhor ainda, de fazer experiência da experiência
- de manipular essa matéria abstracta da palavra para comunicar-se,
imediatamente pelo menos, com meu eu-outro. Com esse eu, que só prolifera e
existe na língua e mediante ela se vê a si próprio, se ouve, se veste, se fala
e se faz mesmo comum aos outros-nós, outros-eus, ao despertencer-se de si
próprio, se jogando ao ar na experiência do dizer. Uma capacidade de criar
mundo?
Tanta razão que se amontoa uma
sobre a outra quando no começo isto não queria ser tão lógico.
Ia caminhando, o corpo rarefeito, como se
tivessem passado muitos anos nos últimos dois meses, o corpo pensando-se e
percebendo-se com Lisboa de novo, os ombros crescendo largos, olhos grandes,
olhos agrandados, a pele velha e querida aceitando a forma que adquire a cada
momento, um nariz aberto que deixava passar a pedra fria. E vou chegando… com passos largos e areados desde
a estação de comboios, através do Mercado da Ribeira até o Largo de São Paulo…
neste ponto suspendo, ralentizo (slow-down) e contorno as formas ou elas me
contornam. Há aqui, neste largo, um perímetro, certas ruas, alguns espaços
onde, por certa dilatação das fronteiras entre o conveniente e o inconveniente,
o corpo-que-caminha avança entre gestos e dobras, suspensões e ligeiras
acelerações que habitualmente formam parte das impossibilidades da cidade, o
gesto se rebela e acontece-me certa abertura, ou o fazer-se da possibilidade.
Esta percepção, que se ia apegando ao pensamento, este pensamento do espaço se
pensando – de se pensar com o espaço - foi me propondo desde a comunicação
imediata com uma climatologia, uma luz, um devir do espaço no tempo; a possibilidade do corpo de criar espaços no
espaço. Mas não só isso! Também observei a sobrevivência e extensão desses espaços criando-se por si próprios, como se a performance Walking and Talking e as práticas de meses na rua, tivessem produzido uma outra dimensão na
historicidade do Largo de São Paulo ou anteriormente na rua da Mouraria, no Beco do Jasmin, etc. E a percepção da extensão destes espaços no tempo estava
a ser quase como se: no labor
comprometido da alquimia subtil da geração de espaços com o espaço-corpo, o que estivéssemos a fazer fosse semear
possibilidade e tempo-espaço no lugar, carregando este de memorias possíveis no
presente.
Irrupção de uma matéria que ainda não é
constatada na língua, uma capacidade que vai se exercitando no corpo-pensante,
de ver, não só desde a funcionalidade dos sentidos, se não desde a capacidade
imaginativa (sense of imagination, Lisa Nelson) ativa continuamente neles e
que no hábito da sobrevivência, na ausência da prática da dúvida é absorvida
no horizonte do conhecido. Isto, é uma tentativa de se aproximar à inflexão que
se realiza na produção do “real” em um espaço quando as atenções se permitem
atentar, não desde um fim específico que tenta identificar as arquiteturas,
movimentos, condições de perigo (ou não) com o propósito de estabelecer o antes
possível um marco seguro, ou (re)conhecido - algo que precisamos que seja sem
dúvida isso que estaríamos vendo (tautologia) - se não, quando na dilatação, necessária nestes dias, do tempo de identificação do “sim é” e do “não é”, um
corpo, uma comunidade considera a possibilidade de gerar o “real” desde as
atenções e o imaginário que destas
emerge, em conjunto com a historicidade, com a qual operaríamos inevitavelmente
na actualização desse “real” - ou fazer do real experiência .
Mais especificamente enquanto nos permitirmos
duvidar que o olho esta treinado para ver só entre estes e aqueles parâmetros,
e o ouvido para ouvir entre estes e aqueles outros, enquanto abrirmos a
possibilidade de que o espaço corpo for imaginado ou estendamos os abismos da
inter-espacialidade dele próprio para com ele próprio. Algo pequeno e grande na
observância desse pequeno, algo próximo e longínquo, algo que não se obriga a
estar preso na história do humano, nessa história que parece nos dizer que
estamos presos a condutas e heranças, algo que se detecta vivo, até na mais
pequena das partículas e abre brecha na sua historicidade com sua historicidade
também.
Neste sentido há sim que brincar
a imaginar, a ver e a perceber, não num positivismo romântico mas simplesmente
como um exercício vital ante o colapso.
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